Serenela Moreira — 19 de abril de 2021
Entrevista com Lara Reis
Desde jovem soube que a sua paixão era matemática, mas só no final do primeiro ano em Medicina Veterinária percebeu que queria seguir uma carreira na área. Fez então a sua licenciatura em Matemática e de seguida dois mestrados: um em Ensino da Matemática e outro em Ensino Especial. Lara Reis é a professora responsável pelo projeto MatOnline e mais recentemente criou uma página dedicada à Física e Química. À NumWorks, partilhou o seu percurso e um pouco da sua visão enquanto professora.
O que a levou a querer ser professora?
Na verdade comecei em Medicina Veterinária. Sempre tive gosto pela matemática, mas via a área da matemática como apenas o ensino, e nem colocava essa questão.
Eu dizia muitas vezes que achava que o meu amor era medicina e a minha paixão era a matemática. A matemática era tão natural. Eu gostava imenso, adorava os dias em que era só matemática na escola. Se estivesse triste com alguma coisa ia fazer matemática.
Fui parar a medicina veterinária e durante o primeiro ano tive bioestatística e adorei a cadeira. Achei um bocadinho estranho, se calhar algo não batia certo. Quando finalizei o ano achei que não estava no caminho certo, e fui seguir a minha paixão.
Ainda sem a ideia de ser professora…
Adorei a licenciatura, mas durante os 3 anos não era ensino que queria. Ao terminar a licenciatura achei que era a única coisa que queria fazer. Acabei por entrar no mestrado em ensino e a partir daí nunca mais pensei em alterar.
Inicialmente, fiz o mestrado em Ensino de Matemática. Depois achei que necessitaria de mais algum foco individual, com cada aluno. Diariamente encontramos alunos com grande dificuldade na matemática e isso muitas vezes atrapalha-nos.
Perante a diversidade de aprendizagens com que me deparei na sala de aula no estágio do mestrado, achei que faltava alguma coisa. Tomei contacto com o curso de Educação Especial por acaso e aí aprendi imensas ferramentas para trabalhar com os alunos. O meu método de trabalho era totalmente diferente do que faço agora, que é muito mais dirigido a cada aluno. E o meu trabalho de divulgação foi surgindo assim.
Então as páginas surgiram para dar resposta a estas dificuldades?
Tudo o que costumo fazer é para dar resposta aos meus alunos. É um bocadinho cliché mas eles são a minha fonte de inspiração. A página MatOnline surgiu em 2015, quando passei de um mestrado para o outro. Senti a necessidade de ter alguma forma de organização. Comecei pela página de Facebook, para os alunos terem acesso a tudo o que tinha. Quando criei a página era apenas para os meus alunos, nem colocava em questão que alguém fosse ver além deles. Mas depois fui recebendo algumas mensagens e comentários de alguns colegas, que gostavam dos materiais.
Que materias são?
Os materiais que eu procuro, se eu comparar com outros colegas que fazem isto há muitos anos, e que eu própria utilizei, são diferentes.
Achei que ia receber um feedback negativo, pois tento desconstruir ao máximo os conteúdos que estou a dar para ser possível para todos os alunos, e sei que isso não é bem visto, pois devemos manter algum nível.
E durante algum tempo achei que este ou aquele material poderia não ser bem recebido, mas houve colegas que foram usando nas aulas.
Acaba por fazer coisas mais simples?
As outras páginas são excelentes e muito importantes e fazem muito mais sentido para os alunos que facilmente percebem conteúdos e nem procuram ajuda fora da escola. Mas os meus alunos ainda não estão preparados para tal. Gosto imenso por exemplo do material do professor José Carlos Pereira, que tem um grau de dificuldade bastante avançado. Quando dou aquele material é para os meus alunos que já alcançaram um patamar superior. Admiro-o imenso.
Como é o processo para encontrar materiais?
Tenho diferentes tipos de materiais, de trabalho mais prático e rotineiro que vou buscar a diferentes fontes. Depois tenho materiais de resumos ou para trabalhar alguns conteúdos que são originais meus.
Eu não faço nada de propósito para colocar em nenhum dos sites, eu faço o que estou a precisar de momento ou que os meus alunos me pedem. Baseio-me muito naquilo que eles me vão colocando.
No entanto, também procuro muito em professores estrangeiros. E foi por aí que fiz a página de Instagram. Comecei a ver muitos colegas, nomeadamente nos EUA, que trabalham muito da mesma forma que gosto de trabalhar, dirigida. E em termos de matemática, que é o que acho que falha em Portugal, eles preocupam-se mais com o que o aluno vai levar para os anos seguintes. Eles fazem muito trabalho de manipulação, não só através de resolução de exercícios, mas jogos…
O processo de aprendizagem é diferente?
Notei que a aprendizagem é feita de forma muito diferente [em Portugal]. Até ao 6.º ano as coisas vão sendo apreendidas de uma maneira, e a partir daí… eu sei que temos um programa para cumprir, mas perdemos, estamos tão centrados nas metas que perdemos toda a questão da matemática. Há muitos professores que me contactam que dizem que estão extremamente desmotivados. Que sentem que estão só a cumprir metas.
O programa está tão centrado na questão do que tem de ser dado e não como tem de ser dado. Tem de ser dada abertura aos professores para dar de forma um bocadinho mais lúdica e sinto isso por parte de colegas que têm muito mais experiência que eu. O que é um pouco assustador. Estarmos desmotivados não é nada bom.
Este ano também dificultou?
Claro que este ano dificulta, mas não tem sido só este ano. Os meus colegas perguntam-me como é que me mantenho motivada, pois dizem-me que já perderam a motivação e não sabem porque seguiram aquela carreira. Isso é gritante nos alunos que tenho, cada vez menos alunos querem seguir ensino.
A própria Sociedade Portuguesa de Matemática alerta para o facto de que brevemente 60% dos professores de Matemática se vão reformar.
Fiquei preocupada. O ensino é o parente pobre das profissões que existem atualmente. Esta profissão é vista como não tendo futuro. E é verdade que houve um grande período de tempo em que muita gente seguiu ensino e não há espaço. Mas agora é o contrário. Não há ninguém e para as poucas pessoas que se formam - contra mim falo - não há um apelo para ir dar aulas.
Mas acho que é uma questão do ponto de vista da sociedade perante esta profissão. Todas as profissões são fundamentais. Lá está outro cliché, mas sem professores o que será das outras profissões?
Pensar que daqui a muito pouco tempo uma grande percentagem de professores se vai reformar e não há novos a entrar reflete sem dúvida a sociedade em que estamos neste momento. Eu noto isso com os meus alunos. Nós já éramos poucos e acho que cada vez haverá menos.
Essa desmotivação dos professores acaba por passar para os alunos?
Contra mim falo pois os meus pais ficaram extremamente tristes quando souberam que eu ia seguir ensino, achavam que eu ia para o desemprego. Dar aulas não é cativante. A questão mesmo do comportamento dos alunos, todas as notícias das coisas que passam na televisão, assusta.
A beleza do ensino, de transmitir o conhecimento e encaminhar, está a perder-se. Há metas a cumprir e os alunos também sentem isso, como ovelhas à espera para entrar no ensino superior.
E os professores têm um papel fundamental na formação para a identidade e a sociedade já não vê isso… e é uma pena. Não estão a olhar para a escola com esse papel de formação de identidade. Fico preocupada com o que vem a seguir.
Porque criou esta nova página, dedicada à Física e Química?
A página de Física e Química (FQ) foi um projeto mais pessoal. Senti que os meus conhecimentos de Física e Química estavam a desaparecer. E era uma pena pois as coisas que fazemos em matemática, gosto de fazer referência a coisas que já deram na Física. E senti que esta passagem já não estava a ser tão fácil, houve alterações no programa e senti que já não tinha a mesma bagagem. E em conversa com colegas da área de FQ, disseram-me que a solução era voltar a estudar. Mas eu não consigo estudar nada que não seja para ensinar. É o que digo também aos meus alunos, que tentem explicar o que estão a estudar. Se conseguirem explicar, o conhecimento está lá. Ao explicar estamos a colocar em prática, a aprender de novo. E foi por aí.
Inicialmente nem era para publicar nada, mas depois tive alguns colegas que me disseram para publicar… mais uma vez com aquele receio que eu tenho de que não estivesse adequado. Mas também tive algum feedback positivo, muito mais rápido até que o MatOnline. Mas acho que é a questão do ano em que estamos. Depois acabei por complementar algumas coisas com vídeos. Normalmente quando acho que o conteúdo precisa de uma abordagem mais aprofundada.
Não há tantos conteúdos de FQ como para matemática?
Tenho exatamente a mesma perceção. Eu acho que os professores de matemática, não sei se pela dificuldade da disciplina, investem e partilham o conhecimento, a divulgação matemática. E esta partilha que fazemos online não é só com alunos mas com colegas. E muitas vezes, estando tão isolados, esta partilha é tão importante.
Qual é a melhor memória que tem enquanto professora?
É difícil. Quando ingressei no Mestrado em Ensino, questionei-me se estava no caminho certo e durante o estágio tive alunos muitos difíceis, mas se calhar foi isso que me chamou. Os alunos que mais me desafiam. Ao longo dos anos, cada turma é diferente, apela-nos de maneira diferente. Mas sem dúvida que o que me marcou foi o estágio, que deu a confiança de que estava no sítio certo. Para mim foi uma confirmação, uma validação: “É mesmo isto que eu quero fazer”.
O que seria se não fosse professora de Matemática?
Os meus alunos colocam-me constantemente essa pergunta. Durante o meu percurso académico queria medicina e fui parar a Medicina Veterinária porque não entrei em Medicina por poucas décimas. Atualmente, já não! Provavelmente alguma coisa ligada à engenharia, mas com matemática, pois não consigo estar sem matemática. Quem entra já não consegue sair.
Acho que faltou incentivarem-nos para as outras áreas que não seja só a medicina, arquitetura, engenharia. Fora disso parecia que não havia mais nada. E eu achei que só podia ser uma dessas áreas. Nem colocava em questão matemática ser uma hipótese. Quando chego a faculdade apercebo-me que não, que afinal podia escolher uma carreira na área da matemática. Tomei essa decisão e nunca mais olhei para trás.
Que dicas e conselhos deixaria para quem quer seguir matemática e ser professor?
Uma professora dizia que “a matemática não é uma profissão, é um modo de estar na vida” e eu acredito nisso. Quem quer seguir matemática, e em qualquer profissão é inevitável, tem que gostar.
Mas nós só temos matemática no curso, não há mais nada. Quem quer investir nesta área tem que ter um gosto imenso pela matemática e tem que ter um gosto imenso por aprender. E saber lidar com o erro. Que é algo que os alunos têm muita dificuldade. Acham que errar é mau, que quando erram já não sabem. É precisamente o contrário. É quando erramos que temos uma possibilidade de aprendizagem.